Vivências no MP: um júri inesquecível em Uruguaiana
Ilustrando a série de escritos “Vivências no MP”, o Procurador de Justiça jubilado, Dr. Paulo Vidal, traz a síntese de um curioso julgamento pelo Tribunal do Júri na Comarca de Uruguaiana, ocorrido em 29 de março de 1982, em que atuou em plenário como Promotor de Justiça. O caso, inusitado, mereceu uma crônica do também membro do Ministério Público aposentado, Dr. Sérgio da Costa Franco, publicada no Jornal Correio do Povo.
Confira:
"Transcorria o ano de 1982. Eu havia assumido o cargo de Promotor de Justiça em Uruguaiana há menos de um ano. O dia era 29 de março. Primeira Reunião do Tribunal do Júri da Comarca de Uruguaiana do ano, sexta Sessão de Julgamento. Réu Enio Augusto Andrade, com condenações definitivas que se aproximavam de 200 anos de reclusão por diversos crimes praticados com violência contra pessoa, especialmente na região metropolitana de Porto Alegre.
Segundo julgamento. No primeiro julgamento o réu havia sido condenado por 4 votos contra 3 votos absolutórios, como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal, à pena de 14 anos de reclusão.
Tendo a defesa recorrido do resultado do julgamento, o Tribunal de Justiça, por entender que a decisão estaria em contrariedade com a prova dos autos, determinou que o réu fosse submetido a novo julgamento.
A circunstância motivadora do novo julgamento, já a priori, demonstrava a dificuldade para o Ministério Público no manejo da prova perante os Jurados. A perícia admitia uma probabilidade muito grande de que um dos dois projetis encontrados no corpo da vítima tivesse sido disparado por um revólver que foi apreendido na residência do réu, que reconheceu a arma e admitiu que a mesma era sua e se encontrava em sua residência, mas alegava tê-la emprestado para terceiro, um tal de Adir Nogueira, nunca encontrado, ao mesmo tempo que vizinhos do réu testemunharam que estiveram com ele na noite do crime, 31 de dezembro, passagem do ano de 1974 para 1975.
A sessão transcorreu de forma tranquila, tendo o réu, de forma não surpreendente, a partir do acordão do Tribunal de Justiça que entendera que a prova lhe era favorável, sido absolvido por 5 votos contra 2 votos condenatórios.
A surpresa, porém, ocorreu quando, tendo o Juiz Presidente do Tribunal do Júri dada a sessão por encerrada, o réu pediu a palavra e, em um linguajar firme, correto e claro, de causar inveja muitos operadores do direito, saudou o Corpo de Jurados, agradeceu e cumprimentou seus dois advogados de defesa, e, afirmou que “eu tenho realmente algo a ver com a morte do motorista...”. Dirigindo-se a minha pessoa, na condição de Promotor de Justiça, referiu que “o senhor estava certo quando falou que eu tinha algo a ver com a morte, se não direta, quase que diretamente”. Após, dirigiu-se ao Juiz dizendo “não acho justo ter sido absolvido, principalmente porque o corpo de jurados acreditou em mim e na defesa, mas sinto muito a decepção de alguns”.
O encerramento inusitado da sessão de julgamento despertou a atenção da imprensa estadual, tendo o Correio do Povo e a Zero Hora, assim como a imprensa local registrado o fato e suas circunstâncias.
Também o colega de Ministério Público jubilado, cronista e historiador Sergio da Costa Franco saudou o reconhecimento do réu à atuação do Ministério Público como um privilégio.
Ocorre que a pretensa confissão não passava de um sofisma. Uma encenação sem qualquer conteúdo processual relevante. Levado para uma sala contígua ao plenário do Tribunal do Júri, utilizada para colher o veredito dos jurados, após dizer que “não poderia falar mais na frente de todo mundo”, Enio não foi faticamente além do que já havia admitido durante a instrução, ou seja, que havia emprestado seu revólver para um terceiro que, provavelmente, teria sido o autor da morte da vítima, mas apenas acentuou um vínculo psicológico com o crime, o que já havia sido, correta ou incorretamente, descartado pelo Tribunal de Justiça assim como também pelo Corpo de Jurados ao absolvê-lo no segundo julgamento.
De acréscimo apenas a revelação de que participava de uma organização criminosa de tráfico de drogas que atuava em Uruguaiana em meados dos anos 70, assim como a confissão de uma morte, com a decapitação da vítima, conhecida por “Português”, seu parceiro de crime e que o havia traído, cuja cabeça foi deixada em uma passarela sobre a BR 116 no município de Canoas, na Grande Porto Alegre.
A imprensa local registrou que Enio Andrade fez revelações sobre a rede de tráfico de tóxicos que funcionou em Uruguaiana, envolvendo, segundo ele, um funcionário da Receita Federal e “muitas pessoas importantes”, propiciando a passagem pela Ponte Internacional de grande quantidade de cocaína, no valor de milhões de cruzeiros, que motoristas de táxi, entre os quais a vítima, traziam de Paso de los Libres malas contendo grandes quantidades de cocaína, e para passarem na Ponte contavam com a colaboração de um funcionário da Receita Federal, que ele próprio e Adir Nogueira recebiam essas malas, tratando com os motoristas através de senhas, e as levavam para São Paulo,sendo muito bem pagos, já que a mercadoria chegava a valer Cr$ 500 milhões em cada viagem, e que a morte da vítima “aconteceu, provavelmente, porque tentara ‘passar Adir para trás’”, quando então Adir lhe pediu emprestado seu revólver, ‘acertou as contas’ e o devolveu depois, talvez até pensando em incriminá-lo”.
Por um dever de ofício interpus recurso de apelação que, como já esperado, restou improvido por razões processuais óbvias.
Durante todo o episódio chamou especial atenção o prazer pelo detalhismo e o orgulho com que Enio Andrade descrevia suas condutas delituosas, deixando evidente uma personalidade psicótica voltada para o crime.
Após, no meio forense, veio a lembrança de que, durante a instrução, por ocasião de seu interrogatório havia proferido palavras agressivas contra o Juiz e a Justiça, não tendo o Magistrado lavrado um flagrante por entender que não haveria sentido fazê-lo contra alguém que cumpria quase 200 anos de condenação. Em outra oportunidade, agora de forma educada, informou ao mesmo Magistrado que ambos tinham uma “madrinha em comum”, já que dentro do Presídio Central, em Porto Alegre, havia se convertido à religião e sido crismado pela esposa de um Desembargador que participava de um grupo de senhoras que prestavam assistência aos presos, e que havia antes sido madrinha de casamento daquele Juiz.
Ainda mais adiante, chegou ao meu conhecimento que o réu era chamado dentro do Presidio Central de “Irmão Enio”, o que talvez explique, em parte e definitivamente, a necessidade da sua pretendida “confissão”.

![/arquivos/Palácio do Ministério Público recebe debate do Pacto RS sobre indústria sustentável /arquivos/DSC_1739[1]](/arquivos/c21c5024a14c555d32d32d898159493c9e878f44.jpg)